quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A bota com a perdigota


Bem sabeis que nesta vida de Inquiridor muitas tarefas, e às vezes pouco aprazíveis, me cabem. São os chamados ossos do ofício, e embora haja coisas que eu não aprecie particularmente fazer, sei que alguém tem que as fazer, não fora eu era outro.
Refiro-me ao meu papel de agente censório. Tudo o que for pergaminho, papiro, gravações na rocha, ou qualquer outro tipo de manifestação linguística passível de carrear informação subliminar, tudo tem que passar, em princípio, sob o escrutínio da minha lupa.
Mas há muita coisa que me escapa. Precisava aqui de mais um ou dois censores ávidos de sangue. A idade, a vista cansada já não me perdoam, e a tarefa de passar a pente fino tanto e tanto texto já vai sendo carga onerosa demais para esta carcaça velha e exaurida.
Pretérito Asneira – esse grande magnata da imprensa regional, proprietário, entre outros órgãos, da Emissora Hertziana INIBE, e que tem em Ruperto Merdocka o seu grande modelo de vida – já me assegurou que os seus órgãos de informação não veiculam qualquer tipo de heterodoxia política, explícita ou latente. Mas que fazer? Eu tenho que dar vazão ao meu serviço, senão, se houver problemas, quem fica a arder sou eu, atado a um varão na praça pública, com o fogo a lamber-me as unhas dospés.
Mas umas coisas e outras agravam a dificuldade da minha missão. Censurar não é fácil. É um trabalho tão, tão obsessivo que por vezes a vista distorce e julgamos até ver tentativas de sublevação ideológica onde ela não pode existir. Vou dar-vos um exemplo: a última edição de um pergaminho que sai quinzenalmente aqui para as nossas ruas trazia, num recanto, a notícia de um evento organizado pelo ilídio municipal, coisa que muito atraiu a minha atenção.
Li o texto de fio a pavio, à cata de alguma célula terrorista de informação, alguma incongruência que denunciasse propósitos menos ortodoxos de difundir doutrinas revolucionárias. E descobri o seguinte: se por um lado falavam de um tal evento organizado pelo ilídio municipal, mais adiante surgiam termos como “ilusionismo...malabarismo e a habitual animação a cargo dos palhaços”, o que me deu logo a ideia de uma horda de saltimbancos a operar na sombra, à espera de uma oportunidade para desferir um coup d'état e ciladear o vizinho.
Julguei estar perante um flagrante delito, mas relido o texto, logo vi que não, que tudo estava bem, porque tendo em atenção a situação, não havia qualquer incongruência, naquela circunstância, em falar, por um lado, do poderio organizativo do ilídio municipal, e por outro lado de “ilusionismo...malabarismo...e palhaços...”
Tudo estava bem. Afinal, a bota batia com a perdigota. Porra! Menos um auto-de-fé!